Depois da ótima primeira impressão que tive de Dostô com o Gente Pobre, chegamos ao meu segundo livro lido dele, O Duplo! Esse livro foi escrito no mesmo ano que o primeiro, que como mencionei na resenha foi muito bem acolhido pela crítica. Dostô acreditava muito no sucesso desse segundo livro e, inclusive, em carta ao autor C. S. Lewis temos a certeza disso:
Trecho da carta de Dostô a C. S. Lewis:
“Já comecei a trabalhar em o “Duplo”. As ideias estão surgindo como uma avalanche. Algumas pessoas que leram o manuscrito “consideraram uma bela obra. […] penso que “O Duplo” é melhor que “Gente Pobre”. Pressuponho que você também considerará.”
Esse livro conta a história de uma período curto da vida de Yákov Pietróvitch Golyádkin, que trabalha como conselheiro titular, na cidade de São Petersburgo. Essa personagem, diferente de Makar do livro anterior, apesar de ter um cargo baixo, não passa por apuros econômicos e definitivamente o foco da narrativa não é social, como foi a anterior, mas psicológico. Nosso heroi está enlouquecendo.
A narrativa começa com Golyádkin se preparando para o grande evento do dia: ir à festa de aniversário da filha de seu benfeitor, o interesse romântico do nosso protagonista. Mas não se engane, essa não é uma história de amor. E é logo no começo da trama que o narrador nos mostra que há algo de peculiar em Golyádkin:
“Golyádkin ficou uns dois minutos deitado sem sua cama, imóvel, como alguém que ainda não sabe direito se acordou ou continua dormindo, se tudo o que está acontecendo ao seu redor é de fato real ou uma continuação dos seus desordenados devaneios”
Não posso culpá-lo por acordar e não ter certeza que acordou, acontece comigo todo dia, mas saber que ele tem desordenados devaneios me deixou em alerta e acredito que deixará você também. Pois bem, antes de sair de casa ele conta o dinheiro que tem guardado, fica muito orgulhoso com a soma que possui, aluga uma carruagem e sai rumo à festa.
Quando ele percebe que está muito cedo para a festa, resolve dar um pulinho no seu médico que mostra desconserto ao ver o paciente e fica um tanto insatisfeito com sua presença. É no diálogo dos dois que descobrimos uma falta enorme de jeito do Golyádkin em conversar. Ele se embanana inteiro até para ter aquelas conversinhas simples do cotidiano. Essa opinião ficou reforçada durante as respostas que ele dá ao médico.
Suas frases são tão confusas e incompletas que me peguei relendo várias vezes alguns trechos achando que tinha me desconcentrado e perdido alguma informação. Ele repete muitas vezes os vocativos – contei 5 vezes o nome do médico sendo usado em apenas uma de suas falas. Se prepare, pois essa estranheza no discurso dele vai nos acompanhar até o final do livro, porém, ouso dizer que é genial.
Após a consulta bizarra com o médico, Golyadikin deixa o consultório e visita algumas lojas. Pede para que os vendedores reservem diversos artigos – para passar a imagem de um senhor de posses. Sem deixar nenhum pagamento por artigos, simplesmente se retira das lojas sem levar nada com um ar muito satisfeito com ele mesmo, sem consciência de que só fez papel de bobo. E de um papel de bobo a outro, partimos com ele para o aniversário.
Descobrimos ao chegar lá que ele não foi convidado. Oops. Isso não foi um problema para ele já que entrou de penetra, fez cena por lá e ainda foi expulso. Se prepare, pois uma sequencia de vergonha alheia será garantida nessa altura do livro. Nosso penetra fica transtornado com a expulsão e sai andando pelas ruas da cidade, perdido na bagunça dos seus sentimentos.
Enquanto anda sem rumo, ele encontra alguém muito parecido com ele. Não. Alguém igual a ele. Seu duplo! E a partir daí todas as pecinhas da vida que ele, desastrosamente, até então, tentou controlar, fogem do controle. Ele assiste esse duplo ser quem ele queria ser, agir como ele gostaria, se metendo em seus planos e colocando em risco tantas coisas importantes para Golyadikin, que numa mistura de veneração e desprezo por seu duplo, se vê desesperado.
A fala do protagonista nas conversas internas e com os outros personagens, exprime seu interior de insegurança, de auto boicote, de bagunça de ideias, devaneios, julgamentos, sempre na defensiva acreditando que estão tramando contra ele ou o julgando. Ele se reafirma muitas vezes dizendo não usar máscaras como os outros, que é um homem honesto. Isso me fez questionar se ele não é esquizofrênico, porém o narrador nos confunde, já que não mostra com clareza se o que o personagem está passando é real ou se é delírio. Somos chamados a ver a história dentro do que é real para o Golyadikin.
Me limito a contar até aqui para não atrapalhar sua experiência com o livro. E contar que nunca gostei tanto de um livro que me fez me sentir tão incomodada. Fiquei absorta com o final tão bem escrito e leal a narrativa.
Acredite, para surpresa do autor, essa obra foi pessimamente recebida, tanto por Belinsk, o crítico literário que tanto o elogiou no primeiro livro, quanto pelos leitores comuns. Inclusive no posfácio desse livro, o tradutor Paulo Bezerra chega a dizer que as pessoas na época não gostaram porque não estavam preparadas para um livro com tamanha carga psicológica. Num estudo superficial, descobri que a esquizofrenia foi descoberta anos depois da publicação de O Duplo. Não é à toa que o próprio Freud chegou a dizer que Dostô sabia mais sobre a alma humana do que ele; e Nietsche a dizer que ele foi o único que o ensinou sobre psicologia.
Apesar dessa não ser a primeira obra a mostrar casos de perturbações mentais e de dissociação, a forma como Dostô conseguiu trabalhar essas condições com tantos detalhes numa época onde elas ainda não haviam sido trabalhadas é louvável. Espero que eu tenha conseguido te deixar com vontade de lê-lo também e que, assim como eu, você se inquiete e divirta com o livro :)
Graças á você eu comecei á ler as obras do Dostoievski. Tenho só como agradecer.